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Transições

….e, tenho em mim aquelas janelas que apenas despertam com vento de chuva. e que se debatem contra os limites das paredes e da forma. e que irrompem o mundo não em sua condição de madeira e vidro, mas na possibilidade de criar esses espassados sons brutos. e que nesses batimentos surdos, entre batentes e paredes, liberam-se de si mesmas e encarnam no próprio vento de chuva. naquele espaço entre o silêncio e a tormenta.

Shakuhachi

O par de olhos estava suavizado por um gesto que combinava curiosidade e ceticismo. Tentava mantê-los levemente semicerrados, numa tentativa legítima de proteger-se contra qualquer eventual invasor.

Mas era inevitável. O corpo buscava refúgio atrás de palavras e gestos largos, mas os olhos, eles, seguiam seu próprio caminho durante toda a conversa. Estava claro: eram vidas independentes em um homem disposto a manter-se intacto.  Eles, não. Os olhos estavam ali para deparar-se com intempéries, marchas ao Norte, ingratidões.

Quando comecei a servir o chá de alecrim, o corpo, subitamente, decidiu retirar-se. Não queria beber insensatez, onde é que já se viu. Dirigiu-se para o canto mais escuro da sala e começou um longo monólogo que, minutos depois, eu descobriria como um diálogo. O corpo, os olhos.

Não chegaram a um consenso. O corpo bateu a porta com violência. Os olhos observaram a partida com certa compaixão. Porque há casos onde só nos resta esperar pelo inexorável.

Meet me in Montauk

Lines in Potentis (clique no video acima), que conheci por meio do blog Eu não sei, Ana, é uma espécie poema-instalação escrito pelo escritor e poeta nigeriano Ben Okri com animação da agência inglesa yeastCulture. O poema foi patrocinado London Assembly/Greater London Authority building, City Hall.

A obra de Okri é classificada como realismo fantástico, ainda que ele recuse esse tipo de categorização. As experiências na guerra civil na Nigéria parecem ter influenciado de forma profundo o trabalho do escritor.

Okri escreve sobre o cotidiano e o metafísico e percorre com desenvoltura os espaços marcados pela linha tênue que separa o real do imaginário, o consciente individual do inconsciente coletivo.

Parte da matéria-prima de Okri é a mesma usada por Charlie Kaufman no roteiro de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (EUA, 2004). O filme fala memória e da ligação atávica que existe entre pessoas, um vínculo incapaz de ser quebrado por regras sociais ou pela tecnologia criada pelo homem.

Quase todo o filme acontece na mente de Joel (Jim Carrey), um homem solitário e reservado que contrata uma empresa, a Lacuna Inc, para apagar as lembranças relacionadas à ex-namorada Clementine (Kate Winslet). Mas, durante o processo de “apagamento de memória”, Joel muda de opinião e tenta, dentro de seu cérebro, evitar que a empresa elimine Clementine de seu mundo interno.

Quando tudo parece perdido, quase no final do processo “cirúrgico”, a última visão de Clementine em sua cabeça lhe dá uma dica de como, mesmo com a memória apagada, Joel poderia reencontrá-la no mundo “real”, fora de sua cabeça. “Meet me in Montauk”, é a chave para o reencontro.

O vínculo entre os dois, portanto, estaria além da experiência no mundo externo, da realidade construída naquilo que costumamos de “mundo real.” Uma prova de que as verdades sobre tempo (passado e futuro) e espaço (apenas o que pode ser visto é real) são apenas e tão somente construções desse mundo interno que podem ser, indefinidamente, feitas e refeitas.

É uma temática que o cinema tem explorado (com certa dose de superficialidade) em produções como o interessante What the Bleep do We Know? e a obra eletrônica de auto-ajuda The Secret.

Encerro este post com a tradução livre de um de trecho de Line in Potentis, que expressa de forma delicada essa idéia.

Diga a todos que a idéia é

funcionar juntos

como os bons músicos fariam

no indefinido futuro das orquestras

Deixe a energia do comércio fluir

Deixe a visão da arte curar

A tecnologia oferecerá as ferramentas

Trabalhadores do mundo

Re-façam o mundo

Orientem-se pela inspiração

e por leis justas


Deleite o futuro

o sexo era cada dia mais intenso e espiral. tão intenso que ela mal podia evitar a onda de imagens da noite anterior durante as horas de trabalho. pedaços de corpo e movimento simplesmente apareciam diante de si, sem convite algum.

Ela era então obrigada a fazer um gesto brusco com a cabeça, a fechar os olhos, numa tola tentativa de afastar os registros da pele.

Quando eles decidiram dar um fim à relação, as imagens decidiram partir com ele.

Ficou desolada com a ausência. Mas, com o acordo selado com o ex-marido, ela ainda pode encontrá-las por umas parcas horas. Todas as terças e quintas.

saiu do carro e, num impulso que lhe parecia óbvio, não subiu as escadas que culminavam na porta de seu apartamento. Em vez disso, marchou até a calçada que lhe deu espaço para uma caminhada surda.

o corpo tomou a dianteira e, a cada passo, um naco de pensamento ficava para trás. os passos se aceleraram.

veja, não era o corpo que pedia espaço, mas essas tramas tecidas com diminutas verdades. era o pensamento que caminhava.

quando um fio de suor buscou um pedaço de seu olhos,  já estava a quilômetros de tudo, naquelas vias desprovidas de luz ou sentido.

parou sem aviso prévio.  jogou todo o seu corpo cansado para trás e, só então, agarrou o caminho de volta com o resto de amor que lhe restava.

pressentiu o caminho de volta. tudo o que ela precisava estava entre seus braços.

Para Emerson Luis

… eu me casei no final de uma tarde dilatada.  o chão da rua era feito de uma areia branca alvíssima, povoada por conchas ocas e barulhentas.

eu estava só, suspensa sobre os meus dois pés descalços. eles caminhavam por mim. no topo da minha cabeça, um céu escancarado de estrelas pedia passagem.

e foi um corpo celeste que me abriu a porta de casa.  entrei sem fazer barulho. cessaram as palavras.

…foi quando eu me casei.

Retecendo o passado

Aquele rio fujão tocou minha campainha esta manhã. Disse que estava de passagem, mas que gostaria de descansar os pés molhados antes de seguir viagem. Eu lhe ofereci um chá de alecrim e, meio sem jeito, fiz a pergunta.

Sentado na cadeira da cozinha, xícara supensa pelas duas mãos de rio, ele me olhou, olhos turvos:

– A trama do que já foi pode ser desfeita e refeita. Basta puxar o fio da memória.

Diante de meu ceticismo, deu sua palavra de rio e, depois de dizer adeus, deixou a casa pela janela da sala.

Parténope andava cansada do mar. Numa noite iluminada pela lua crescente, decidiu deixar para trás, por uma breve temporada, suas paredes de água salgada.

Acomodou rapidamente suas coisas de Parténope em uma pequena maleta xadrez. Subiu lentamente até a superfície escura do Tirreno e, com a cabeça fora d’água, esticou seus pequenos olhos cinzas para o ponto mais alto do céu. E, assim, com certo esforço, foi erguendo seu corpo sinuoso em direção a um campo povoado por uma luz magnífica.

A alguns milhões de anos antes da núcleo da supernova, Parténope perguntou, em um quase-sussurro:

– Querida irmã, estou encantada com tua presença. Gostaria de mergulhar nas águas que emanam de ti. Tenho permissão para continuar?

A deidade estelar permaneceu em silêncio durante um milhão de anos.

Cansada de esperar uma resposta, Parténope recuou, ombros baixos, deixando para trás o objeto de seu encantamento.

Mergulhou então escuro do ar até atingir a superfície da Terra para, finalmente, voltar às suas paredes de água salgada.

A única testemunha da volta de Parténope foi o italiano Annibale de Gasparis. De seu observatório, viu o corpo da mulher-peixe transforma-se em uma grandiosa rocha de ferro e níquel.

Os astrônomos juram que ela ainda flutua, solitária, pelos ares. Mas os pescadores experientes garantem que ela vive nas profundezas desobedientes do Tirreno.

Armarinhos

Da caixa de costura de minha avó saltou um longo rio barulhento em forma de serpente. Percorreu toda a sala, debatendo-se entre biscuits e móveis de jacarandá.

E tanto buscou que encontrou o vidro de uma janela distraída. Em meio aos estilhaços, disparou seu corpo esguio em direção ao sul, para onde – dizem as más línguas – rumam todos os curiosos e desobedientes.

//padronagens.wordpress.com

Por Wagner Campelo em http://padronagens.wordpress.com

Pousou em minha janela, com suas delicadíssimas asas negras povoadas por vermelhos e brancos. Ficou olhando para o azul da paisagem, abrindo e fechando suas pernas aéreas, naquele movimento descomprometido dos lepidópteros.

Eu, fincada em pesadas pernas de gente, só pude arrancar os olhos da tela do computador e pousá-los sobre minha companheira fortuita. Pensei em um momento que ela pronunciaria uma palavra, ofereceria um sinal, desbravaria a fronteira do indizível.

Tolice! Borboleta quer lá representar devaneios de Cortázar? Em seus três meses de existência (estaria no terceiro?) viveria, voaria e falaria como borboleta. Nem mais uma antena, nem menos. E foi assim que ela partiu, sem concessões. Porque, francamente, esse papo de borboleta…